quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Kafka e a literatura


Voltemos à literatura e ao poder que ela tem - ou pode ter, se o leitor assim se predispor - sobre o indivíduo a partir de uma desconcertante citação de Kafka (numa carta enviada, em 1904, ao seu amigo Oskar Pollak):

"Em última análise, parece-me que devíamos ler apenas livros que nos mordam e firam. Se o livro que estamos a ler não nos desperta violentamente como uma pancada na cabeça, para que nos havemos de dar ao trabalho de o ler? Para nos dar felicidade, como tu dizes? Por Deus, seríamos igualmente felizes sem livros nenhuns; em caso de necessidade, podíamos nós próprios escrever livros que nos tornassem felizes. Do que precisamos é de livros que nos atinjam como a desgraça mais dolorosa, como a morte de alguém que amávamos mais do que a nós próprios, que nos façam sentir como se tivéssemos sido expulsos para meio dos montes, longe de qualquer presença humana, como um suicídio. Um livro tem de ser a picareta para o mar gelado dentro de nós. É isto que penso." (PAWEL, The Nightmare of reason).

Se a citação tem de ser enquadrada numa mundividência kafkiana - e sabemos o quão difícil e aliciante é tentarmos aceder a um tão intrincado nível de pensamento -, a verdade é que a literatura não é (não pode ser) indiferente ao indivíduo. Kafka evita as frases feitas de que a literatura é o mundo, é a vida, é tudo e tudo nela se encontra. Literatura não é nada disso; é isso e muito mais, pois dentro de cada livro há uma realidade muito para além do que aquilo que nele efetivamente está escrito. 
Compreendemos assim que, através da literatura, a outras vidas conseguimos aceder e várias perceções e sentimentos podemos vislumbrar, mesmo que sejamos expulsos para "meio dos montes" e a leitura se faça no silêncio do quarto ou na performance de rua. Um livro tem de ser picareta, abre caminhos a meio do mar gelado (a analogia do gelo com o humano também não deixa de nos perturbar quando somos seres de sangue quente). E se concordamos com Kafka quando diz que poderemos ser felizes mesmo sem livros, a verdade é que, com os livros na nossa vida, temos sempre um pouco de mais cor na nossa realidade, mesmo que nos firam e nos mordam.

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