"Mãe com criança enferma". Pablo Picasso, 1903.
Metropolitan Museum of Art, New York.
Uma das coisas que é comum é que todos tivemos Mãe. Pode ainda estar connosco ou não, mas que passou por nós, de uma maneira ou de outra, isso é inegável. E devemos estar felizes por isso, independentemente de tudo o que de mau possa ter acontecido.Nem que seja naquele momento único na vida de uma mulher em que dá vida a outro ser, ela esteve connosco. E naquele momento tudo, deu-nos a possibilidade de sermos tudo na vida. E porque há coisas que só os poetas conseguem dizer, deixo-vos com Herberto Hélder.
No sorriso louco das mães batem as levesgotas de chuva. Nas amadascaras loucas batem e batemos dedos amarelos das candeias.Que balouçam. Que são puras.Gotas e candeias puras. E as mãesaproximam-se soprando os dedos frios.Seu corpo move-sepelo meio dos ossos filiais, pelos tendõese órgãos mergulhados,e as calmas mães intrínsecas sentam-senas cabeças filiais.Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressadovendo tudo,e queimando as imagens, alimentando as imagensenquanto o amor é cada vez mais forte.E bate-lhes nas caras, o amor leve.O amor feroz.E as mães são cada vez mais belas.Pensam os filhos que elas levitam.Flores violentas batem nas suas pálpebras.Elas respiram ao alto e em baixo. Sãosilenciosas.E a sua cara está no meio das gotas particularesda chuva,em volta das candeias. No contínuoescorrer dos filhos.As mães são as mais altas coisasque os filhos criam, porque se colocamna combustão dos filhos, porqueos filhos estão como invasores dentes-de-leãono terreno das mães.E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,e atiram-se, através deles, como jactospara fora da terra.E os filhos mergulham em escafandros no interiorde muitas águas,e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãose na agudeza de toda a sua vida.E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,e através dele a mãe mexe aqui e ali,nas chávenas e nos garfos.E através da mãe o filho pensaque nenhuma morte é possível e as águasestão ligadas entre sipor meio da mão dele que toca a cara loucada mãe que toca a mão pressentida do filho.E por dentro do amor, até somente ser possívelamar tudo,e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.(excerto do poema «Fonte», publicado em A Colher na Boca, 1961)
Sem comentários:
Enviar um comentário